segunda-feira, 25 de maio de 2015

A parábola de Mushin

(Trecho do livro “Sempre Zen”, de Charlotte Joko Beck)

Há muito tempo, numa cidade chamada Esperança, vivia um rapaz chamado Joe. Ele estava muito dedicado ao estudo do dharma e, por isso, tinha um nome budista: Mushin.

Sua vida era igual à de todo mundo. Ia para o trabalho e tinha uma boa esposa; mas, apesar de seu interesse pelo dharma, era machão, sabido, amargo. Aliás, era tanto desse jeito que um dia, depois de ter criado toda espécie de confusão no trabalho, seu patrão lhe disse: “Basta, Joe. Você está despedido!”. Assim Joe saiu. Desempregado. Quando chegou em casa, encontrou uma carta da esposa na qual dizia: “Para mim chega, Joe. Fui embora.” Foi desta maneira que ele ficou com o apartamento, consigo mesmo, e nada mais.

Mushin
Mas Joe, Mushin, não era alguém que desistia com facilidade. Jurou que embora não tivesse emprego nem esposa iria conseguir aquilo que realmente importava: a iluminação. Foi até a livraria mais próxima. Procurou nas edições mais atualizadas como chegar à iluminação. Encontrou um livro que lhe chamou a atenção em particular. Chamava-se “How to catch the train of enlightenment” (Como pegar o trem da iluminação). Comprou-o e começou a lê-lo com muito cuidado. Depois de tê-lo estudado até o fim, foi para casa e abriu mão do apartamento, colocou todos os seus pertences seculares numa mochila e dirigiu-se à estação ferroviária nos limites da cidade. O livro dizia que se a pessoa seguisse todas as instruções — faça isso, faço aquilo — o trem chegaria e ela conseguiria pegá-lo. Ele pensou: “Fantástico!”.


Joe foi até a estação ferroviária, que era um local deserto, leu o livro mais uma vez, decorando as instruções, e acomodou-se para esperar. Esperou muito tempo. Por dois, três, quatro dias, esperou a chegada do Trem da Iluminação porque o livro dizia que viria com certeza. Ele tinha uma fé imensa no livro. Quando, no quarto dia, ouviu aquele enorme rumor à distância, aquele resfolegar imenso. Sabia que devia ser o Trem. Então se aprontou. Ficou tão excitado porque o Trem estava vindo, que mal conseguia acreditar... e... uuush... o Trem passou direto! Foi tão rápido que não passou de uma mancha. O que tinha acontecido? Ele não tinha conseguido pegá-lo!

Joe ficou admirado, mas não desanimou. Pegou de novo o livro e estudou mais alguns outros exercícios; trabalhou bastante enquanto sentava-se na plataforma, entregando tudo que tinha àquela decisão. Cerca de três ou quatro dias depois ouviu de novo o imenso barulho ao longe e, desta vez, estava seguro de apanhar o Trem. De repente, lá estava ele... uusshh... passando sem parar. Bem, o que fazer? E evidente que havia um Trem, não era o caso de não existir. Ele sabia disso, porém não conseguiu apanhá-lo. Então, estudou e tentou cada vez mais, trabalhou sem parar e toda vez acontecia a mesma coisa.

Com o tempo, outras pessoas também foram à livraria e compraram o livro. Então, Joe começou a ter companhia. Primeiro eram umas quatro ou cinco pessoas, esperando pelo Trem, e logo depois reuniram-se trinta ou quarenta. A excitação era imensa! Ali estava a Resposta, vindo sem sombra de dúvida. Todos podiam ouvir o barulho que o Trem fazia ao passar e, apesar de ninguém jamais conseguir subir nele, havia uma grande fé de que algum dia, de algum jeito, um deles finalmente o apanharia. Se ao menos uma só pessoa conseguisse pegá-lo, serviria de inspiração para as demais. Assim, foi aumentando a pequena multidão e a excitação era maravilhosa.

Com o tempo, porém, Mushin observou que algumas daquelas pessoas traziam seus filhos pequenos. E ficavam tão absortas procurando pelo Trem que, quando as crianças queriam a atenção de seus pais, estes lhes diziam: “Não incomodem, vão brincar!”. Aquelas criancinhas estavam realmente sendo negligenciadas. Mushin, que afinal de contas não era um sujeito tão ruim assim, começou a ponderar: “E, cara, eu bem que gostaria de esperar o Trem, mas alguém tem de tomar conta dessas crianças”. Por isso, começou a dedicar um certo tempo a elas. Olhou em sua mochila e tirou de lá nozes, passas e barras de chocolate e distribuiu tudo entre a garotada. Algumas estavam mesmo esfomeadas. Os pais que estavam esperando pelo Trem não pareciam sentir fome, mas seus filhos sentiam, e estavam com os joelhos esfolados. Então, Mushin encontrou uns curativos na mochila, cuidou dos arranhões, e depois leu para eles histórias dos livrinhos que tinham.

Começou a acontecer que, embora ele ainda desse uma certa atenção para o Trem, as crianças passaram a ser sua principal preocupação. Havia um número cada vez maior delas. Em poucos meses havia adolescentes também e com a chegada deles acumulou-se muita energia e vigor. Mushin então organizou os adolescentes e criou um time de beisebol atrás da estação. Começou a cultivar um jardim para mantê-los ocupados, e chegou a incentivar algumas das crianças mais ordeiras a ajudá-lo. Antes que percebesse, ele tinha um grande empreendimento em andamento. Tinha cada vez menos tempo para o Trem e estava com raiva disso. O que era importante estava acontecendo com os adultos que esperavam pelo Trem, contudo ele tinha de tomar conta de tudo aquilo com os garotos e assim sua raiva e amargura estavam fervilhando. Porém, independente disso, sabia que tinha de cuidar das crianças e tomava conta delas.

O tempo passava, e centenas e milhares de observadores do Trem chegavam com seus filhos e parentes. Mushin estava tão atolado com as necessidades das pessoas que teve de aumentar as instalações da estação. Providenciou mais alojamentos para dormir; teve de construir um correio e escolas, e estava sempre ocupado, mas sua raiva e seu ressentimento também estavam bem ali. “Sabe, só estou interessado na iluminação. Aquelas outras pessoas todas estão esperando o Trem e o que eu estou de fato fazendo?” Entretanto, continuava tomando conta de tudo.

Então, certo dia, lembrou-se de que embora tivesse dado a maioria dos livros que tinha em seu apartamento, por algum motivo, tinha guardado um pequeno volume. Pegou-o de dentro da mochila. O livro era “How to do zazen” (Como fazer zazen). Agora Joe tinha um novo conjunto de instruções para estudar, e essas não pareciam tão ruins. Acomodou-se para aprender como fazer zazen. Bem cedo de manhã, antes que os outros se levantassem, ele se sentava em uma almofada para praticar um pouco. Com o passar do tempo, aquele programa frenético e exigente de trabalho em que inadvertidamente se envolvera não lhe parecia mais tão opressor. Começou a pensar que talvez existisse alguma ligação entre este zazen, este sentar, e a paz que estava começando a sentir. Uns poucos na estação também começavam a ficar desencorajados com o Trem que não conseguiam apanhar, e começaram a se sentar com Joe. O grupo fazia zazen todas as manhãs e, ao mesmo tempo, a empresa da espera-do-Trem continuava em expansão. Na próxima estação, logo mais abaixo na linha, havia uma colônia inteiramente nova de aguardadores do Trem. Os mesmos problemas de sempre já estavam aparecendo ali, por isso seu grupo ia até lá de vez em quando para ajudar a solucionar as dificuldades. Chegou mesmo a ser construída uma terceira estação... um trabalho infindável.

Estavam todos trabalhando muito mesmo. De manhã à noite alimentavam as crianças, faziam serviços de carpintaria, administravam o correio, instalavam uma nova clínica pequena, tudo que uma comunidade precisa para funcionar e sobreviver. Nesse tempo todos eles não estavam conseguindo esperar pelo Trem. As coisas apenas se mantinham em andamento. Eles conseguiam ouvir o barulhão e ainda restava um pouco de ciúme e de amargura. Contudo, apesar disso, eram forçados a admitir, não era mais o mesmo. Estava ali, mas também não estava. O ponto de mutação para Mushin ocorreu quando tentou fazer uma coisa que seu livrinho descrevia como sesshin. Reuniu-se com seu grupo, num canto da estação ferroviária, criaram um espaço em separado e durante quatro ou cinco dias praticavam intensamente o zazen. De vez em quando ouviam o trovejar do Trem à distância, mas ignoravam-no e continuavam sentados. Apresentaram essa difícil prática também nas demais estações.

Mushin estava agora com cinquenta e poucos anos. Demonstrava o efeito do tempo de tensão e de trabalho. Estava ficando arcado e cansado. Mas, nesse momento, não se preocupava mais com as coisas da mesma maneira que antes. Esquecera-se das grandes questões filosóficas que costumavam apreendê-lo: “Existo de fato?”; “A vida é real?”; “A vida é um sonho?”. Estava tão ocupado sentado e trabalhando que tudo o mais se esvanecia, exceto o que precisava ser feito a cada dia. A amargura desapareceu. As grandes questões desapareceram. Finalmente, não havia mais nada para ele, exceto o que tinha de ser feito. No entanto, Mushin não sentia mais que era o que tinha de ser feito; apenas o fazia.

Havia, por essa época, uma comunidade imensa de pessoas nas estações ferroviárias, trabalhando, vindo com seus filhos, além dos que estavam esperando pelo Trem. Algumas destas voltavam aos poucos para a comunidade, enquanto outras iam chegando. Mushin por fim começou a amar as pessoas que também estavam esperando pelo Trem. Ele as servia e as ajudava a esperar. Isso prosseguiu por muitos anos. Mushin foi ficando cada vez mais velho e cansado. As questões que tinha foram acabando até não restar mais nenhuma. Havia apenas Mushin e sua vida, fazendo a cada segundo o que precisava ser feito.

Certa noite, por uma razão ou outra, Mushin pensou: “Vou ficar sentado a noite toda. Não sei por que desejo fazer isso. Vou apenas fazê-lo”. Para ele, o sentar não era mais uma questão de ir em busca de alguma coisa, de tentar melhorar, de tentar ser santo. Todas aquelas ideias já se desfizeram há muitos anos. Para ele, não havia mais nada, exceto sentar: ouvir uns poucos carros passando ao longe. Sentir o ar frio noturno. Apreciar as mudanças que se processavam em seu corpo. Mushin sentou a noite inteira e, com o raiar do dia, ouviu o ruído do Trem. Então, muito devagar, este acabou parando exatamente em sua frente. Foi quando percebeu que desde o início tinha estado no Trem. Aliás, ele era o próprio Trem. Não havia necessidade de pegá-lo. Nada a compreender. Lugar algum aonde ir. Apenas a totalidade da própria vida. Todas as antigas questões que não eram questões se respondiam por si. Finalmente, o Trem evaporou e havia apenas um velho sentado noite afora.

Mushin espreguiçou-se e levantou-se da almofada. Saiu para preparar o café que compartilharia com quem estava chegando para trabalhar. A última vez em que o viram foi na carpintaria com alguns dos meninos mais velhos, construindo um balanço para o parquinho. Essa é a história de Mushin. O que Mushin descobriu? Deixarei que vocês mesmos respondam.

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